A partir de 1935, uma lei regulamentou a profissão para maiores de
quatorze anos. No entanto, muitos garotos com idade inferior exerciam a
profissão “ilegalmente”. Caso fossem surpreendidos, eram levados para o Juizado
de Menores*. Percebe-se – num país em que o pobre não tinha acesso aos estudos -
que não havia distinção de pena entre um menino que trabalhava na
clandestinidade e aquele que era menor infrator. Outra sacanagem. Desta vez
cometida pelo relator e pelos legisladores que aprovaram a lei. Entre ver um
menino com menos de quatorze anos trabalhando (sem que seja explorado) e
aprendendo uma profissão, eu fico com essas duas possibilidades.
Entre uma engraxada e outra, como também no final do expediente, os
engraxates de rua dançavam a tiririca (incluem-se aqui os adultos). Nela, dois
desafiantes se enfrentavam no jogo de pernas ao som do batuque nas caixas e nas
latinhas de graxa*. E tudo só terminava com a chegada da polícia que considerava
bagunça esse tipo de coreografia. Mais outra sacanagem. Agora, por parte da
polícia.
A caixa de engraxate era um fascínio para alguns
meninos da minha época, eles sonhavam com essa profissão nessa fase da vida. No
entanto, há algumas coisas que desejamos e outras que são necessárias. Os
garotos das classes sociais menos favorecidas viviam essa dualidade. Primeiro,
pelo desejo de exercer essa atividade. Segundo, precisavam ajudar os pais no orçamento familiar.
Por uma deformação cultural, alguns meninos da
classe média eram proibidos pelos pais. Para matar a vontade, pediam aos
engraxates para que os deixassem carregar um pouquinho a caixa, mexer nos
utensílios tais como a latinha, escova, flanela, entre outras coisas. Assim
sendo, pelo menos por instantes,
usufruíam de um prazer que os libertava da
camisa-de-força imposta através de uma ordem social.
Para os garotos pobres, engraxar sapatos encenava
uma série de detalhes: possuírem uma caixa de engraxate com a haste em cujo
extremo havia o suporte para o pé do cliente. Essa parte cumpria também outra
finalidade: encaixava-se nos ombros deles enquanto procuravam fregueses.

Depois, pelo corte do calçado: parte
superior que cobre a parte de cima do pé; na sequência, o alvo era a lingueta,
aquele couro flexível que funciona como uma camada protetora entre o dorso do
pé e os cordões. O contraforte – reforço colocado na região do calcanhar – era
o próximo a receber uma camada dessa
pasta, a graxa. Dando continuidade, esse produto era aplicado com uma escova
dental pelas laterais do solado.
O momento solene era a hora de lustrar cujas etapas ocorriam acompanhadas de fundos musicais (batucadas). Os garotos faziam a marcação do samba com assovios ou estalos com a língua. Ou, então, batiam com a escova de lustrar na caixa de engraxar. Ou, ainda, com a flanela de lustrar na parte superior dos sapatos.
Há certa inversão conceitual no que
diz respeito às batucadas dos engraxates. Fica a impressão de que eles eram
motivados pelos sambas de carnaval. Pelo contrário, eles que foram os
incentivadores dele. Não há muita visibilidade disso uma vez que era uma rotina
no dia a dia dos engraxates. O Carnaval, ao contrário, é uma efeméride.
Há pesquisas acadêmicas a respeito
dessas batucadas. Nelas, seus autores atestam que o samba paulistano e as
escolas de samba da capital tiveram forte influência dos sambas que os
engraxates executavam no exercício desse ofício*. Tito Madi, por exemplo, grande
cantor e compositor brasileiro, é autor de um samba de muito sucesso chamado
Samba do Engraxate.
Quando a engraxada chegava ao fim,
vinha a opinião do cliente. Caso precisasse de algum retoque, o engraxate o
providenciava. Após receber pelo serviço, o menino se sentia um homem. Mesmo
desprovido dos hormônios de um adulto.
Créditos:
* "Vai graxa ou samba, senhor": monografia de Augusto André de Oliveira Santos para tese de mestrado em História Social.
Imagem: Google
* "Vai graxa ou samba, senhor": monografia de Augusto André de Oliveira Santos para tese de mestrado em História Social.
Imagem: Google
Nenhum comentário:
Postar um comentário