sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Lolita, de Vladimir Nabokov


Moral? Imoral?

Os críticos mais sisudos, quero dizer, aqueles escritores que são mais sisudos do que críticos, ainda estão-se perguntando se devem ou não incluir Lolita entre as obras literárias e Vladimir Nabokov entre os grandes nomes do romance universal (1). 
Um deles, o mais tipico de todos (por vários motivos), começava assim o seu artigo: "Não tendo o gosto das menininhas, nem simpatia pelos apreciadores de menininhas, mesmo coniventes, eu não alimentava o desejo de falar de Lolita. Entretanto, como existe no mundo literário uma questão ou um "caso" Lolita, já que esse livro encontrou numerosos leitores e que os meus mais graves confrades, e entre eles os mais sérios dentre os mais graves, entretiveram o público a esse respeito, para admirar ou para se indignar, dizem-me que também devo dar a minha opinião sobre esse "best-seller". 
Existe, realmente, um "caso" Lolita, mas não é caso do romance: é o caso da crítica. Chega a ser desalentador que, em cada geração, a propósito dos bons e dos maus livros (falo dos livros como obras de arte literária), a respeito dos livros que ficam como a respeito dos livros que passam, a crítica manifeste as mesmas hesitações, as mesmas incompreensões e os mesmos erros técnicos de apreciação. 
Lolita é, nesse particular, um romance exemplar - como Manon, como Madame Bovary, como Ulysses, como O Primo Basílio, como a Recherche, como o Amante de Lady Chatterley, como todos esses livros que desgostaram os inimigos (pelo menos em palavras) do adultério, da crua realidade, dos vícios inconfessáveis, de todas as manifestações daquela "trágica beleza das tempestades humanas", de que falava Pierre Trahard. 
Sempre haverá um promotor público, com o nome predestinado de Pinard, para acusar Madame Bovary; sempre haverá um diretor de correios para impedir a circulação do Ulysses; sempre haverá os imbecis encarregados do policiamento dito moral das bibliotecas. 
Assim, os melhores críticos cometeram com Lolita o mesmo erro que os seus predecessores haviam cometido com O Primo Basílio ou com O Amante de Lady Chatterley, o mesmo erro que os editores norte-americanos cometeram com o livro de Nabokov: julgaram-no, como acentuava posteriormente o autor, não pela sua maneira de tratar o tema, mas pelo tema em si mesmo, isto é, desejaram inconscientemente (e é realmente Freud quem explica essas coisas) eliminar a Literatura, como atividade do espirito.
Se, para admitir Lolita entre as grandes criações literárias, for necessário que o crítico sinta pelo menos algumas tendências humbertianas, então teríamos de desconfiar de todos os fervorosos admiradores de Proust, entre os quais, creio eu, aquele confrade se inscreve; e se, para amar Manon (atenção! é ao livro que me refiro!), for preciso que o leitor tenha um pouco da vocação de Des Grieux... É fácil ver aonde conduz esse tipo de raciocínio, prova de que as preocupações moralizantes, por respeitáveis que sejam, nada têm a fazer na critica de literatura.
O que importa saber é se Lolita, como criação literária, acrescenta alguma coisa ao gênero romanesco e se o seu autor alcançou o plano em que se situam os grandes escritores, se ele pode ser incluído naquela galeria ideal em que a posteridade colocou os Flaubert e os Prévost, os Eça de Queiroz e os Joyce. É evidente que sim. O sucesso editorial do romance não é uma prova da sua boa qualidade, mas não é, tampouco, necessariamente, uma prova da sua má qualidade.
O sucesso, dos bons como dos maus livros, é inexplicável: tenhamo-lo por dito, de uma vez por todas. A função da critica e dos críticos é, justamente, a de verificar, em cada caso, até que ponto os sucessos e os insucessos são legítimos.
No que concerne a Lolita, há, desde logo, uma indicação da sua autenticidade: é a insistência com que o romance viveu no espirito do seu autor, com que exigiu ser escrito e reescrito, com que "forçou" a publicação. 
Ainda aqui, como se sabe, "le temps ne fait rien à l'affaire", isto é, não constitui uma evidência de qualidade. Mas não é só de tempo que se trata. A verdade é que uma primeira versão de Lolita foi escrita por volta de 1940 e destruída logo depois. 
Mas, o romance existia e Nabokov decidiu-se não somente a reescrevê-lo, mas a recriá-lo e a recriá-lo duplamente, quando se sabe que, escritor de língua russa, viu-se obrigado, de repente, a empregar um idioma estranho: "O livro amadureceu lentamente", escreve ele, "muitas vezes interrompido, muitas vezes abandonado. Tinham-me sido necessários quarenta anos para inventar a Rússia e a Europa ocidental, e, agora, era-me preciso inventar a América. 
A procura dos ingredientes locais próprios a temperar com um pouco de "realismo" (eis uma dessas palavras que só têm sentido entre aspas) a receita da imaginação pessoal revelou-se uma tarefa muito mais penosa, aos cinquenta anos, do que fora durante a minha juventude europeia, quando o automatismo da minha receptividade e da minha memoria estava no seu apogeu". 
Aos poucos, porém, Lolita adquiriu a sua forma e ficou concluído em 1954. Essas simples indicações mostram por si mesmas que a hipótese do livro pornográfico deve ser desde logo, excluída: os autores desse tipo de literatura não vivem, geralmente, essas angústias da criação de que o velho Flaubert deixou um diário impressionante. Mas é evidente, da mesma forma acentua Nabokov, que não se pode exigir de um escritor que trace os limites exatos entre o sensível e o sensual: na vida como na literatura seria igualmente impossível. 
Lolita não contém nenhuma lição imoral. Como todos os grandes romances, a ideia, mesmo longínqua, de lição moral é absolutamente estranha à sua natureza. Para transcrever, ainda, algumas palavras de Nabokov, "um romance só existe na medida em que suscitar o que se poderia chamar cruamente uma volúpia estética, a saber, um estado de espirito que se une, não se sabe onde nem como a outros estados de espirito nos quais a arte - isto é, a curiosidade, a ternura, a caridade, o êxtase - constitui a norma". 
Essa volúpia estética, onde o sensível e o sensual se harmonizam, é a sensação artística por excelência, e os que a confundem com a pornografia estão implacavelmente se julgando a si mesmos, não só como pessoas, mas ainda, e em particular, como sensibilidades artísticas.
Evidentemente, havendo sempre um "escândalo" ao redor das grandes obras de arte (escândalo que não surge, em todos os casos, da implicações morais, mas da própria criação como novidade), parece difícil, à primeira vista, distinguir a invenção artística genuína das que apenas desejam beneficiar-se do escândalo. Mas, o problema só existe, a meu ver, para os que não sabem abstrair das suas apreciações esse fator absolutamente estranho à arte que é, justamente, o escândalo. 
O sucesso, mesmo legítimo e despertado por outras circunstâncias, é uma forma de escândalo; a celebridade é um escândalo permanente; a glóia é um escândalo definitivo. Mas os escândalos, de boa ou de má natureza, nada tem com o valor da obra em si mesma: eles podem consagrá-la, dissimulá-la ou tomar-lhe o lugar. 
Como, entretanto, na apreciação da obra de arte são apenas os valores artísticos que interessam, segue-se que nós outros, críticos literários ou leitores de boa-fé (a boa-fé não excluindo, antes exigindo, um espírito esclarecido), nada temos a fazer com valores de outra ordem.
No caso de Lolita, pois, trata-se muito simplesmente de saber se, como obra de arte, é uma daquelas criações que marcam a história do seu gênero, um momento da sensibilidade humana.
Quanto a isso, pode-se dizer não somente que Lolita acrescenta alguma coisa ao romance, como, ainda, que ela assinala uma nítida mudança de gerações literárias. Não me refiro à idade do autor ou dos seus críticos e leitores, mas à "idade" do gênero romanesco. Como Brás Cubas, Lolita foi escrita com "a pena da galhofa e a tinta da melancolia": é essa mistura de elementos contraditórios que surpreendeu os críticos europeus (e os não europeus) e os desorientou. 
A nós outros, entretanto, que possuímos Machado de Assis (para alguma coisa serve ter-se um Machado de Assis!), tais audácias já espantam muito menos e encontram todo aberto o caminho da compreensão. Nabokov escreveu um livro amargo e triste, uma historia dramática e angustiosa, mas resolveu escrevê-la em toda lucidez, sem deixar-se levar à mistificação de uma falsa gravidade, sem excluir essa tempestade de paixão da linha normal dos acontecimentos cotidianos.
No estudo admirável que consagrou à aventura intelectual no seculo 20, R. M. Albéres acentuava, justamente, que "essa forma especial de visão, essa desconfiança com relação ao tartufismo, esse tique de lucidez" são alguns dos aspectos que separam os escritores ditos "modernos" dos escritores ditos "tradicionalistas". 
Estes últimos, por conformação espiritual, tudo admitem - desde que tenha a consagração do tempo, desde que se situe no passado, desde que não implique um compromisso pessoal. Assim, por exemplo, acham admirável a Phedre, de Racine, que dizia claramente (e fazia mais do que dizer): "Je respire à la fois l'inceste et l'imposture", mas recusavam, há trinta anos, um Proust, como, há quarenta anos, recusavam um Gide.
A história de Manon Lescaut já começa a ser admitida como uma grande obra literária, visto que dois séculos garantem a sua respeitabilidade; as Flores do Mal só puderam circular, a principio, pelo que tinham de flores, mas não pelo que tinham de mal. Contra Balzac, porém, nenhum censor dessa natureza se levantou e Balzac, como Stendhal, foram em algumas obras, os precursores de Proust e de Gide! É por aí, precisamente, que se verifica a pobreza desses espíritos, que só percebem o evidente e que, por isso mesmo, deixam-se enganar pelas aparecias.
Quais são, afinal, as qualidades literárias que permitem inscrever Lolita, sem hesitação, entre as obras permanentes do romance? Em primeiro lugar, e antes de mais nada, o seu tema: Nabokov não recuou da terrível responsabilidade de transportar para a arte literária mais um desses turvos aspectos da alma humana, mais uma dessas formas dramáticas de existir que fazem do homem um mistério. 
Em segundo lugar, ele construiu a sua história de acordo com uma arquitetura romanesca impecável. Aqui, seria possível mostrar que o romance, mesmo aquele que, como Lolita, nada deseja inovar na técnica narrativa, adquire em cada uma das suas encarnações, uma forma que lhe é própria. Essa forma responde, em cada caso, à estrutura mental do personagem principal, personagem que, no livro de Nabokov, não é Lolita, mas Humbert Humbert. 
Por paradoxal que pareça, a figura de Humbert Humbert ainda não adquiriu, no espírito dos críticos e dos leitores, o seu relevo próprio: há, até agora, uma especie de horror físico com relação a ele, qualquer coisa como um temor de contaminação. Só isso já faria as delicias de um psicanalista, mas representa um erro fundamental na apreciação do romance. 
Esta não é a historia de Lolita: é a historia de Humbert Humbert. O romance chama-se Lolita porque tudo é visto através da psicologia de Humbert Humbert, é não somente a sua visão do mundo, mas a sua visão propriamente dita, que Nabokov quis encarnar no romance. Daí aquela espécie de alienação que predomina em numerosos e em alguns dos trechos mais fundamentais desse livro, em particular em todo o extraordinário episódio do assassínio de Quilty. 
A anormalidade de Humbert Humbert não é de natureza exclusivamente sexual, como supõem os leitores escandalizados: não há anormalidades de natureza exclusivamente sexual. Ele é um anormal de espirito, é um homem que vive num mundo particular e que vive a sua psicose. Todo o problema de Nabokov consistia, precisamente, em fazer viver normalmente esse anormal sem vê-lo pelas perspectivas dessa normalidade média e convencional que permite a existência da sociedade.
Mas, o romance não é só isso: trata-se, também de um romance de amor. Toda grande paixão é psicopática, tem a natureza das obsessões incuráveis e a totalidade da alienação. Desse ponto de vista, o amor de Humbert Humbert não se distingue, como sentimento, de qualquer outro grande amor da vida ou da literatura: há uma poética e há uma realidade do sentimento amoroso, assim como há a poetização dessa realidade. 
A verdade, porém, é que o amor de Swann como o de Humbert Humbert, o de Romeu como o de Abelardo, o de Tristão como o de Carlos da Maia, não se distinguem por qualquer maior ou menor nobreza reciproca. A normalidade de uns será a anormalidade dos outros, como André Gide observava há meio seculo - e dentro das normalidades aparentes são assustadoras as anormalidades ocultas. 
Nabokov, dentro da linha de evolução do romance, enfrenta a tarefa de criar uma obra de poesia com o material grosseiro desta pobre humanidade - e Lolita é, também uma história poética, não da poesia sentimental da coleção azul, mas dessa poesia trágica e amargurada que recobre a desgraça dos destinos excepcionais. 
Além dessa, há uma poesia amorosa no sentido corrente da palavra: entre as cenas essenciais do seu livro, o próprio Nabokov indicava os "sons argentinos elevando-se da aldeia no fundo do vale até às bordas de uma pequena estrada de montanha". Como todos leram Lolita, será desnecessário situar essa cena, que é um dos "nervos motores do romance".
No que se refere à psicologia dos personagens, não há uma só nota falsa em todo este livro: de Humbert Humbert a Lolita, passando para os personagens secundários e para os que são meramente episódicos, todos eles respondem com admirável coerência ao seu "tipo" romanesco, à "função" que foram encarregados de desempenhar.
E como todos esses figurantes representam os espécimes, da humanidade "normal" (a própria Lolita sendo uma menina normal, inclusive, o que é esclarecedor para a ótica da história, na sua inconsciente depravação precoce), filtrados pelo espirito de um "anormal", há, permanentemente, em filigrana, esse contraste de comportamento, essa repulsa de cores, que dá à narrativa o seu verdadeiro caráter. 
Acontece, porém, que a humanidade "normal" vive, simultaneamente, as suas próprias "anormalidades", as peculiaridades de cada um, as esquisitices inseparáveis da personalidade, e os reflexos, por isso mesmo, se multiplicam ao infinito como nos espelhos paralelos. Essa sutileza de construção tem passado despercebida, mas é ela, sobretudo, que define este romance como uma grande obra de arte. 
Graças a ela, Humbert Humbert já não se distingue a tal ponto dos seus semelhantes, tanto mais que o leitor sente claramente que em cada um daqueles personagens uma história idêntica à de Humbert Humbert certamente se repete, embora sob formas diversas. Assim, naquele professor rodeado de adolescentes; assim, naqueles colégios em que Lolita estudou; assim, naqueles motéis que se multiplicam pelas estradas com as suas curiosas advertências pregadas nas paredes...
Tudo isso é valorizado pela extraordinária arte de escritor de Vladimir Nabokov. Tendo lido este romance em tradução, sinto a impossibilidade de um julgamento pormenorizado sobre o estilo considerando-se ainda que o próprio romancista já o escreveu "em tradução". Não é difícil perceber, entretanto, que Nabokov é um dos mais extraordinários estilistas do romance, compreendida a palavra não só no que se refere à maneira de escrever, mas também no que concerne à maneira de sentir a palavra.
Lolita é, quanto a isso, uma verdadeira obra-prima, escrita com uma inteligência agudíssima, com uma inesgotável faculdade de invenção, inclusive verbal, e com uma objetividade perfeita. O próprio Humbert Humbert não se enganava e, se desejou viver mais algumas semanas, foi para imortalizar num livro inesquecível a história dolorosa de Lolita. Não: a historia dolorosa de Humbert Humbert.
(1) Vladimir Nabokov - Lolita - Tradução de Brenno Silveira - Editora Civilização Brasileira S. A. - Rio de Janeiro, 1959.

Wilson Martins - No projeto do Suplemento Literário feito por Antonio Candido, o nome do crítico paulista Wilson Martins (1921-2010) era o primeiro a aparecer na lista de colaboradores da parte fixa do caderno. Autor de obras de peso como A História da Inteligência Brasileira, Martins teve sólida carreira acadêmica - lecionou por 26 anos em Nova York -, porém se considerava, acima de tudo, um crítico literário de jornal.
Fonte: Suplemento Literário de 7.11.1959.

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