Em um livro póstumo, O Amor Natural, de 1992, Carlos Drummond de Andrade dá um solavanco no leitor. Todos os poemas publicados são eróticos, mas não são pornográficos. O livro contém, por exemplo, o poema A Bunda, que Engraçada. Vamos conhecê-lo:
A
bunda, que engraçada.
Está
sempre sorrindo, nunca é trágica.
Não
lhe importa o que vai
pela
frente do corpo. A bunda basta-se.
Existe
algo mais? Talvez os seios.
Ora
– murmura a bunda – esses garotos
ainda
lhes falta muito que estudar.
A
bunda são duas luas gêmeas
em
rotundo meneio. Anda por si
na
cadência mimosa, no milagre
de
ser duas em uma, plenamente.
A
bunda se diverte
por
conta própria. E ama.
Na
cama agita-se.
Montanhas
avolumam-se, descem.
Ondas
batendo
numa
praia infinita.
Lá
vai sorrindo a bunda.
Vai
feliz na carícia de ser e balançar.
Esferas
harmoniosas sobre o caos.
A
bunda é a bunda,
rebunda.
Ao
término da leitura, o leitor não consegue fazer uma conexão entre esse estilo
de poema e a sobriedade da fisionomia e do perfil do poeta. Por sinal, os seus
traços fisionômicos se assemelham àqueles
padres sisudos de antigamente ou aos de alguns militares. Ernesto Geisel, por
exemplo.
Espantado
com o conteúdo do poema, o leitor diz:
- Verdade, ele tinha mesmo cara de padre ou de militar.
- Verdade, ele tinha mesmo cara de padre ou de militar.
- Só
da cintura pra cima. – respondo.
E
não estou faltando com a verdade. Dizem que entre ele e sua esposa, dona
Dolores, havia outra saia, Lygia Fernandes, colega de trabalho no Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional. E havia mesmo. Ele morreu segurando as mãos
dela.
“O poema A
bunda, que Engraçada parece, ao que nossa leitura indica, inserir-se no
nono daqueles nove núcleos temáticos discernidos pelo próprio poeta, ou seja,
uma visão, ou tentativa de, da existência. Partindo-se desse princípio, o que é
apresentado no poema nada mais é do que uma grande metáfora do ser humano e sua
existência ambígua, reduzido à uma parte íntima e pouco “poética” de seu corpo:
a bunda.” – escreveu Aparecido Donizete
Rossi num belíssimo artigo.
Mas cá entre nós. Que
Drummond imaginou a anatomia de uma bunda, imaginou. Agora, uma pergunta
incômoda: sendo assim, de quem era a bunda poetizada por Drummond? De dona
Dolores, a esposa ou de Lygia, a outra? Ou de nenhuma das duas?
Texto registrado na Agência Brasileira do ISBN (International Standard Book Number) - Ministério da Cultura - Fundação Biblioteca Nacional, sob número 978-85-63853-54-7.
Crédito da imagem: Google
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