quinta-feira, 2 de março de 2017

Entrevista com a escritora Heloísa Alves

Nascida em Ribeirão Preto, Heloísa Alves, escritora e professora de Língua e Literatura Portuguesa, é autora do recém lançado "No caminho eu conto", um belíssimo livro de contos. De cara, ela mostra ao leitor um texto fluente, límpido e competente através da forma utilizada para externar as suas impressões e sentimentos.

Dona de uma delicadeza e de um requinte incomum, democratizou toda e qualquer forma de pergunta nesta entrevista concedida ao Blog. Dessa forma, em nenhum momento, a escritora sinalizou com uma placa de Entrada-Proibida. Formulamos perguntas concretas à entrevistada e - em nenhuma delas, recebemos respostas vagas.

Heloísa Alves detém um mérito que, a meu ver, não pode passar despercebido por aqueles que entram em contato com o seu livro. Qual? O aprofundamento a respeito da escolha do gênero literário através do qual ela optou pela sua narrativa, o conto. Essa escolha é característica dos escritores que têm pleno domínio da escrita através de uma linguagem narrativa atraente, cativante e que envolve a curiosidade e emoção do leitor.

De início, aqueles que escrevem contos  sabem da imprecisa definição desse gênero. Conforme muitos já conceituaram, o conto não pode estar apenas atrelado à uma intuição ou inspiração. O escritor precisa de um domínio da linguagem, da forma, do encaixe das palavras e, por fim, de muita reflexão. É assim que Heloísa se conduz.

Para chegar a esse ponto, o que ela precisou fazer? Você irá entender. Para isso, faça uma analogia com o romance, o cinema e a fotografia. O romance apresenta uma ordem aberta e sem limites, além de ser uma narrativa cujo olhar do autor pode ser mais abrangente. Devido a isso, assemelha-se ao cinema. Essas duas produções apresentam uma visão mais ampla dos fatos que contam e das cenas que produzem. 


JULIO CORTÁZAR
Por outro lado, a exemplo da fotografia, o conto fica restrito a um limite físico. Aquela pressupõe uma limitação prévia devido ao espaço reduzido que a câmera pode abranger e pelo modo como o fotógrafo usa essa limitação. No entanto, os dois, o fotógrafo e o contista, fazem um recorte da realidade e fazem dela uma realidade mais ampla. Aqui está o grande mérito de quem escreve esse gênero. A conceituação acima é de Julio Cortázar (1914-1984), escritor argentino nascido na Bélgica e que adotou a cidadania francesa em 1981. Ele foi um dos grandes mestres do conto.

Heloísa assina alguns contos do livro com o pseudônimo de
A AUTORA

Malu Lumièri; outros, com o de Úrsula Jitrois. A esse respeito, a questão se desdobra no tocante à elucidação. Esses contos seriam uma forma de não mostrar um retrato das dimensões psicológicas da autora, caso, em alguma época, antes da publicação do livro, foram publicados através de outro suporte de texto?  Ou uma mera opção? Ou, ainda, contos que participaram de concursos que exigiam pseudônimos? Ou não é nada do que explicitei?

Um resenhista, um crítico literário ou um ensaísta ( o ensaio só se faz depois da crítica feita, pelo menos era assim nos tempos da crítica literária de rodapé dos jornais, oriunda da escola francesa) não resolvem essa charada. Diante de situações dessa natureza, as suas conclusões são hipotéticas. Mas quem entrevista Heloísa com a curiosidade de um menino não precisa deduzir nem ficar intrigado. Basta perguntar, ela conta. É o que veremos na entrevista. Nela, a autora dirime esse tipo de dúvida. 

No entanto, a vantagem da proximidade e/ou de um contato através de meios instantâneos pesam a favor de quem entrevista. Nessa questão, tenho de ser honesto. O crítico, o resenhista e o ensaísta, na maioria das vezes, não têm possibilidades de troca de impressões com o autor da obra.Nesse caso, deixo claro: não se trata de certo ou errado, mas das condições mais favoráveis de quem entrevista.

Em Pelo caminho eu conto , nada está fora do esquadro do gênero adotado pela autora. Nem mesmo os fios soltos dos finais de alguns contos que em Literatura são chamados de finais abertos.


JOÃO LUIZ LAFETÁ
Diante de tudo isso,  resta-me lavrar um flagrante da minha admiração pela competência literária de Heloísa Alves com esta maravilhosa definição do inesquecível crítico literário e professor da Unicamp, João Luiz Lafetá (1946-1996), falecido precocemente:

"Nada de traços caricatos ou esboços grosseiros de personagens e enredo. A técnica é outra: desce com cuidado ao detalhe, desenha-o bem nítido e exibe-o. É uma exibição discreta, sem alarde, mas feita no lugar justo, no instante em que o desenvolvimento da narrativa assim o exige. E sabe também, como poucos, suspender a palavra no momento certo, apenas insinuar aquilo que o leitor completará sozinho."


HELOÍSA ALVES: ESCRITORA, POETA E PROFESSORA

ENTREVISTA
No seu livro deparo-me com uma contista exemplar, uma autora com pleno domínio da escrita e uma irrestrita capacidade de imaginação. Além do conto, você escreve algum outro gênero literário.
Escrevo poemas e poemas Aldravistas. 

A partir de quando você se sentiu pronta para escrever?
Eu sempre gostei de escrever. Parto do princípio que somos todos escritores. Basta ter vontade e estar aberto para se expor à crítica tanto favorável como desfavorável. 
Eu escrevo desde a adolescência.

HELOÍSA ALVES COM A POETA MARA SENNA
Quais os escritores brasileiros de sua preferência?
Clarice Lispector, Machado de Assis, Ignácio de Loyola Brandão, Mara Senna, Ely Vieites, Drummond e tantos outros. Temos escritores maravilhosos.

Os Estados Unidos deram um chega pra lá no colonizador e criaram a Literatura Americana. Não se submeteram à Literatura Inglesa. Em qual delas há um escritor da sua preferência?
Na Literatura Inglesa, adoro James Joyce. Gosto muito de Shakespeare.

Na condição de professora e escritora, você realiza algum trabalho voltado para o incentivo da escrita e da leitura?
BIBLIOTECA E.E. OTONIEL MOTA
Tenho um trabalho de desenvolvimento de dois projetos importantes que incentivam a escrita e a leitura: "Combinando Palavrase "Incubadora Cultural" que depois serão transformados em livro.
"Combinando Palavras" é um projeto de sucesso. Há 10 anos foi escrito para a E.E. Otoniel Mota. Este ano, a Fundação do Livro e Leitura, o SESC e a Diretoria Regional de Ensino de Ribeirão Preto estão levando esse projeto para todas as escolas estaduais de Ribeirão Preto e região.
É um trabalho de releitura. Este ano abrangerá os escritores Ignácio de Loyola Brandão, Zuenir Ventura, Luis Fernando Veríssimo, Lya Luft e Nélida Pinõn. Eles estarão na Feira do Livro de Ribeirão, no Teatro Pedro II, para o lançamento de um livro digital, fruto desse trabalho de releitura. Serão homenageados pela reescrita dos alunos e professores que queiram participar.
A "Incubadora Cultural" é uma parceria entre a USP e o Otoniel Mota.


ESCOLA OTONIEL MOTA
Qual a importância da escola Otoniel Mota em sua vida?
O Otoniel Mota foi a primeira escola que eu dei aula na minha vida. A emoção foi muito grande porque tive a oportunidade de iniciar a minha carreira com grandes profissionais e, entre eles, alguns foram meus professores na Faculdade. A importância da Instituição Otoniel Mota é de grande relevância. Passaram por essa Escola grandes expressões da História Nacional.

Na qualidade de educadora, o que mudaria no ensino atual?
Trabalharia com a Escola da Ponte, do professor português José Pacheco. O aluno busca a construção do conhecimento. Muito mais adequado, o professor trabalha com um orientador e o educando escolhe o que quer estudar cumprindo todo o programa com liberdade.

Qual o fundo musical você colocaria na leitura de um conto seu. Qual conto escolheria?
O fundo musical seria "Eu sei que vou te amar"; o conto, "Uma viagem dentro de casa". 



PSEUDÔNIMO
O motivo de assinar alguns contos com os pseudônimos de Malu Lumière e Úrsula Jitrois, excluindo-se outros desdobramentos por essa preferência,  foi a participação em concursos cujas regras prescreviam a exigência de assinatura autoral fictícia?
Eu nem sei te explicar porque escrevi com pseudônimo. Não sei se foi uma forma de me preservar ou, ainda, por não ter a coragem necessária para me expor totalmente. Esses contos com esse tipo de assinatura são mais antigos, eram guardados de gaveta.

ROMEU E JULIETA
Dizem que, passado algum tempo, o casamento é o lugar onde menos se faz sexo e, quando se faz, é o de pior qualidade: rápido, morno, sem nenhuma emoção. O que você escreveria num conto a respeito da união de Romeu e Julieta lá pelos seus vinte anos de vida em comum? Ou do casal do filme "As Pontes de Madson" ,caso ficassem juntos no final da história?
A convivência se torna morna quando ela é acomodada. O romance de Romeu e Julieta pode ser vivido uma vida inteira, depende de como tratamos o nosso relacionamento. Todos podem ficar juntos até o final. Ou podem viver uma outra história. Por isso, gosto de final aberto.

Não consta no seu livro, mas como se trata de uma atitude comportamental das relações entre os dois sexos (característica muito presente nos seus contos), como é possível explicar a questão do patrão se envolver com a empregada? O que falta na esposa, muitas vezes extremamente bem dotada desse elemento que julgam importantíssimo, a beleza? Já pensou em escrever um conto a esse respeito?
Esse tipo de relacionamento é coisa do passado para mostrar o poder do homem em relação à mulher. Isso acontecia muito na época da escravidão. Hoje é muito diferente. Não tem necessidade de se estar junto se o amor acabou, Posso, sim, pensar em escrever um conto sobre esse tema.


RESTAURANTE LE MEURICE, FRANÇA
O glamour dos espaços em que ocorrem os enredos das suas narrativas é algo incomum. Fico imaginando um restaurante tranquilo, paredes tom pastel (cor quente), mesas afastadas umas das outras, uma música suave, uma conversa ao pé de ouvido e um vinho Klein Constantia Vin de Constance, por exemplo. Você acha que ambientes dessa natureza - cenários ideiais para o amor romântico - ficarão cada vez mais longe das novas gerações ou não?

As novas gerações procuram o romance. É uma outra época. Os lugares são outros: as baladas. Mas ainda existe momentos de muito romantismo e muito amor. 

ESTAÇÃO DA LUZ - SÃO PAULO S.P.

Em qual cidade do Brasil você ambientaria todos os seus contos?
O ambiente brasileiro para os contos do meu livro seria a cidade de São Paulo. Ela tem um pouco de cada lugar do mundo.


ILUSTRAÇÃO DO CONTO "BAILE DE MÁSCARA"
Em seu conto "Baile de Máscara" , página 68 do seu livro, o enredo é um adultério. Poeticamente, o último parágrafo diz assim: "Ambos se entregam enrolam-se e desenrolam o significado da paixão (...). Há uma diferença sútil, mas fundamental, ente amor e paixão. Esta só acontece no adultério. Acabou o adultério, acabou a paixão. O amor é outra coisa. Concorda?
Eu não vejo adultério quando existem momentos únicos que não devem ser compartilhados com ninguém, só entre o casal envolvido. A paixão e o momento são o fogo que abrasa, mas são passageiros. O amor é diferente, mais calmo, mais duradouro. No conto, eles viveram a paixão do momento. Se isso vai se transformar em amor, não sei, depende da criatividade da leitura que o leitor faz.

Considerando o final aberto do seu conto "O Olhar" o casal nunca mais se veria ou se veriam ocasionalmente ou assumiriam um relacionamento definitivo? Apenas na condição de leitora, a sua opção seria por qual desfecho?
Como o final é aberto, cada um imagina o seu final. Na condição de leitora (não de autora), penso na possibilidade só daquele encontro.

Apoiando-me no empoderamento de algumas das suas personagens em "No caminho eu conto", posso conceituar que, através do perfil que elas adotam, é mais fácil despirem-se de todos os seus pudores e vestirem-se com todas as suas fantasias? algo menos habitual em um relacionamento estático.
A mulher moderna é feminina sem ter um comportamento feminista apesar da liberdade de escolha. O sonho e a fantasia fazem parte desse universo. 
ÁLVARO LINS: O IMPERADOR DA CRÍTICA DE RODAPÉ
Até a década de 60 prevalecia a crítica literária de rodapé filiada à escola francesa de crítica literária (que já mencionei em outra pergunta desta entrevista). Através dela, o crítico literário colocava a cabeça a prêmio: dizia se o livro era ou não era bom. Posteriormente, surgiram as resenhas literárias, de tradição americana, que são mais uma divulgação do livro. Hoje, a crítica literária está confinada aos guetos universitários. Vê-se, por exemplo, que naquela época havia o Suplemento Literário. Este foi substituído pelo Caderno Cultural onde a Literatura é obrigada a conviver com um lixo cultural. O que aconteceu?
Hoje temos que ser abertos para as novas linguagens. Como a língua é um organismo vivo, ela está em constante mutação. Às vezes, precisamos prestar atenção naquilo que consideramos uma literatura talvez menor. Eu não diria isso uma vez que, se ela tem espaço, é porque chama a atenção. Precisamos fazer uma reflexão maior sobre essa nova linguagem e entender que ela é também Literatura.

Seu poeta favorito?
Vinicius de Moraes.


HILDA HILST
Vinicius de Morais namorou a escritora Hilda Hilst, uma mulher muito à frente da época dela. Numa restaurante à beira de estrada, decidiram saborear churrasco de carneiro. Vinicius escolheu o carneiro a ser abatido para o churrasco. Parecia em êxtase enquanto participava desse ritual. Hilda Hilst se levantou e foi embora. Não acreditava que um homem como Vinicius, inundado de poesia, adotasse essa postura. O namoro acabou ali. Como você qualifica essa atitude do poeta?
Hilda Hilst foi uma grande poeta. Vinicius o poeta maior. Penso que o namoro não acabou por causa disso. Senão eles não teriam ido a esse lugar para saborear o churrasco de carneiro. Alguma outra coisa a incomodou.


BOBY DYLAN
Boby Dylan é o mais recente Prêmio Nobel de Literatura. Concorda com a escolha dele? Qual a sua opinião pela ausência de Boby Dylan na entrega do prêmio?
Eu acho muito merecido o prêmio para um homem que é um poema. A vida toda dedicou-se à música. Suas letras são poemas. E a música o fundo para os poemas nos encantar. Eu vejo tudo como Literatura: a música, a moda, a dança, o grafite, as telas de pintura, o teatro, o cinema e toda e qualquer expressão de arte que mostra mudanças e nos contam a história através dos tempos. Os sons se modificam. A pintura muda através do momento literário.
Quanto ao não comparecimento dele, não é o primeiro que deixa de comparecer. O importante é o reconhecimento pelo seu trabalho.


HELOÍSA ALVES

Descreva Heloísa Alves para o leitor.
Sou uma pessoa que acredita na vida e na bondade e capacidade do ser humano. Se todos nos uníssemos para uma educação de qualidade teríamos um mundo muito melhor. Só a Educação e a Arte podem transformar o mundo.


NOTA DO BLOG
Importa acrescentar a sua imensa densidade humanística. Obrigado, Heloísa.
                                                                                 





2 comentários:

  1. Olá Augusto, parabéns pela perguntas fundamentadas e profundas; pela iniciativa que só faz aumentar o desejo em conhecer a obra de uma escritora de bagagem literária tão vasta e impecável.
    À Heloísa Alves, minha admiração.
    Abraços

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  2. Obrigado, Elzinha. A Heloísa Alves é uma excelente escritora. Fiquei muito honrando por ela ter me concedido esta entrevista. Quero informar-lhe que você está na lista das próximas entrevistadas. Um cordial abraço. Augusto Aguiar.

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