quarta-feira, 12 de julho de 2017

A trinca de Gerusa


Aos sessenta anos, Gerusa aparentava menos idade. Viúva, morava sozinha. Era uma mulher muito rica.  Num feriado pela manhã, sentou-se à mesa de sua biblioteca para rever os álbuns da família. 

Sem filhos, fora casada por três vezes. No primeiro casamento, com Zé Inácio que, em certo momento, enveredou para o jogo de baralho; no segundo, com Zé Carlos, escultor; no terceiro, com Zé Rubens, médico legista.

Depois de um longo tempo olhando o álbum com fotos de sua infância, mocidade e da fase adulta ainda solteira, começa a folhear o da época de namoro e dos anos de casamento com Zé Inácio.

Foi um namorado maravilhoso. No dia do casamento, antes da cerimônia religiosa, mandou um telegrama para ela com estes dizeres: “Um casamento de almas gêmeas não precisa passar pelo altar, nem pelo Registro Civil. Deus já sacramentou sem formalidades. Mesmo assim, te espero no altar”.

Certa vez, já casados, numa manhã fria em Campos de Jordão, ele escreveu com batom no espelho do banheiro do hotel: “A chuva fininha lá fora e a gente se afinando aqui dentro, desfiando ternuras”. Quando leu, Gerusa, emocionada, correu para os braços dele. Esse jeito do marido coloria a rotina do casal.

No oitavo ano do casamento, sem que se saiba a razão, ele começou a exercitar com intensidade o vício pelo jogo de baralho. Apenas isso parecia fazer parte de sua vida.

Sem alimentar-se corretamente, sem banho, barba por fazer, entre outras infrações com a higiene pessoal, jogava por dias seguidos Quando voltava para casa, não aparentava nada daquele Zé Inácio de antigamente: elegante, bem vestido, sempre preocupado com o visual.

Gerusa não acreditava no que via. Não suportava o cheiro de cigarro, de bebida, do suor misturado com o perfume vencido. Louca da vida, dizia: “Você está com cheiro de fusível queimado”. Em seguida, enfiava-o debaixo do chuveiro.

Era comum, durante os banhos, ele conversar sozinho, descrever táticas de jogo, simular conversas com algum parceiro e outras babaquices. Fazia isso com tal intensidade que transmitia a sensação de dividir o banho com um dos parceiros de jogo. Gerusa percebeu o equívoco de casar-se com ele. Durante um banho, ele caiu morto.

Há tempos, ela mandara construir uma sepultura magnífica, ainda não utilizada. Um mausoléu. Nele, Gerusa sepultou seu primeiro Zé.
No período da tarde, após descansar um pouco, retoma o contato com os álbuns. Folheia o da época em que foi casada com Zé Carlos, o escultor.

Bonito, físico avantajado, elegante, educado, dono de uma fineza incomum ao tratar com as pessoas, nunca foi um namorador serial, mas as namoradas que teve sempre foram mulheres belíssimas. Muito culto, não era pretensioso ao divulgar seus conhecimentos.

Relativamente bonita, Gerusa exalava um magnetismo que contagiava a todos. Seu corpo pautava-se pelas formas medianas, nem magra, nem mais recheada. Seu jeito de andar era provido de  um rebolado  tentador, nada econômico. Caso se expressasse pela fala, seria um rebolado tagarela. Nele, a cada passo, as nádegas faziam aquele treme-treme tal qual a gelatina  quando é tocada. Quem sofresse de labirintite e acompanhasse aquele mexe pra lá, mexe pra cá, cairia.  Zé Carlos não resistiu à exterioridade e à interioridade dela, pediu-a em casamento. Casaram-se. A cerimônia do casamento foi simples.

Ela estava sempre presente no ateliê do marido. Por lá, transitavam as modelos que pousavam para a produção escultórica dele. Levando em conta a preferência de Zé Carlos por figuras humanas em suas esculturas, quis tirar uma dúvida. Perguntou-lhe:
- Sempre as modelos tipo graveto (magras), por quê?

Ele explicou-lhe que a antiga inclinação por mulheres mais gordas simbolizava a maternidade, a submissão do sexo feminino. Dos anos sessentas em diante, devido à emancipação feminina, optou-se pela secura das formas, símbolo da independência feminina. Mas entendia que todos os tipos de formas tinham seus atrativos.

E acrescentou:
- Esculpirei o corpo mais lindo que já vi na vida, o seu. E junto, o meu. Nós dois numa das posições do Kama Sutra, aquele livro que ensina malabarismos nas posições sexuais. Farei um escultura com imensa carga erótica. Ninguém precisará saber, será um segredo nosso.  Nem há necessidade de você posar, conheço o teu corpo poro a poro, pelo a pelo.

Algum tempo depois, terminou o trabalho. Em bronze, com uma perfeição inigualável, sobre um bloco dessa liga metálica, lá estavam as formas de Gerusa. Suspirou cheio de amor e disse para si mesmo: “Humanizei-a”. Agora, só faltava a escultura com a imagem dele para completar a cena.

Eufórico demais, fez -  involuntariamente - um movimento brusco. A estátua desabou, bateu com a parte inferior do púbis no rosto do escultor. O impacto provocou múltiplas fraturas no rosto. Além disso, ao bater com a cabeça contra o chão, ele sofreu um traumatismo craniano.  Ali mesmo, morreu. 

A cena perturbadoramente erótica, mas triste, mostrava o órgão abaixo da região pubiana da estátua sobre o rosto de Zé Carlos. Caracterizava a reprodução perfeita de uma coreografia do Kama Sutra.
No mausoléu, Gerusa sepultou seu segundo Zé.

À noite, após um lanche, ela revê o último álbum, aquele de seu casamento com Zé Rubens, o legista.

No trâmite burocrático da documentação relativa ao falecimento de Zé Carlos, Gerusa teve diversos contatos com o médico legista, Dr. Zé Rubens, encarregado da autópsia do corpo do falecido marido. Nasceu uma grande amizade que se estendeu por anos.

Nesse período, Zé Rubens também ficou viúvo. Tempos depois, casou-se com Gerusa. Viviam bem, mas ela sempre corrigia a desagradável mania dele contar a respeito de suas autópsias, exumações etc. Isso acontecia o tempo todo, mas nunca acontecera no tempo de namoro.

Na hora das refeições, por exemplo, ele fazia minuciosamente esses tipos de comentários. Por sinal, nojentos. A ponto dela alimentar-se antes do almoço e do jantar. À mesa com ele, apenas fingia que comia alguma coisa. Compenetrado no que falava, ele nem percebia isso.

Certa vez, engatados durante o ato sexual, ele comentou que, durante movimentos idênticos, uma mulher, cujo corpo ele fez o exame cadavérico, foi morta pelo marido traído. Este a surpreendeu com o amante. E quis detalhar. Gerusa esfriou, não aguentava mais aquele tipo de comportamento. 

Apesar de tudo, era um profissional dedicado e competente. Devido a isso, foi chamado para compor a equipe de médicos legistas que examinaria, no Egito, uma múmia ainda fechada dentro do sarcófago. Presumidamente,  um Faraó.

Nesse trabalho, ele contraiu uma coceira crônica que o levava à loucura. Fez tratamentos especializados, mas não adiantou. Quando estava nas últimas, balbuciou para Gerusa:
- Anote, no rodapé do laudo que elaborei a respeito da múmia, o que penso a respeito dos sintomas que sinto.
Em seguida, antes de morrer, pronunciou suas últimas palavras:
- A coceira tem um quê de masturbação seguida daquele tipo de orgasmo com arranhões. No mausoléu, Gerusa sepultou seu terceiro Zé,

Quase meia-noite, guardou os álbuns de fotografias. Triste, encerrou aquele feriado. Não dormiu bem naquela noite. No dia seguinte, mandou fazer uma lápide luxuosa para o mausoléu dos ex-maridos.
Dias depois, a lápide foi colocada lá. Continha os seguintes dizeres:

“Aqui jaz uma trinca de Zés.”


 Imagem: Google

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