Aos sessenta anos, Gerusa aparentava
menos idade. Viúva, morava sozinha. Era uma mulher muito rica. Num
feriado pela manhã, sentou-se à mesa de sua biblioteca para rever os álbuns da
família.
Sem filhos, fora casada por três
vezes. No primeiro casamento, com Zé Inácio que, em certo momento, enveredou
para o jogo de baralho; no segundo, com Zé Carlos, escultor; no terceiro, com
Zé Rubens, médico legista.
Depois de um longo tempo olhando o
álbum com fotos de sua infância, mocidade e da fase adulta ainda
solteira, começa a folhear o da época de namoro e dos anos de casamento com Zé
Inácio.
Foi um namorado maravilhoso. No dia
do casamento, antes da cerimônia religiosa, mandou um telegrama para ela com
estes dizeres: “Um casamento de almas gêmeas não
precisa passar pelo altar, nem pelo Registro Civil. Deus já sacramentou sem
formalidades. Mesmo assim, te espero no altar”.
Certa vez, já casados, numa manhã
fria em Campos de Jordão, ele escreveu com batom no espelho do banheiro do
hotel: “A chuva fininha lá fora e a gente se afinando aqui dentro, desfiando
ternuras”. Quando leu, Gerusa, emocionada, correu para os braços dele. Esse
jeito do marido coloria a rotina do casal.
No oitavo ano do casamento, sem que
se saiba a razão, ele começou a exercitar com intensidade o vício pelo jogo de baralho. Apenas isso parecia fazer parte de sua vida.
Sem alimentar-se corretamente, sem
banho, barba por fazer, entre outras infrações com a higiene pessoal, jogava por dias seguidos Quando voltava para casa, não aparentava nada daquele
Zé Inácio de antigamente: elegante, bem vestido, sempre preocupado com o
visual.
Gerusa não acreditava no que via. Não
suportava o cheiro de cigarro, de bebida, do suor misturado com o perfume
vencido. Louca da vida, dizia: “Você está com cheiro de fusível queimado”. Em
seguida, enfiava-o debaixo do chuveiro.
Era comum, durante os banhos, ele
conversar sozinho, descrever táticas de jogo, simular conversas com algum
parceiro e outras babaquices. Fazia isso com tal intensidade que transmitia a
sensação de dividir o banho com um dos parceiros de jogo. Gerusa percebeu o
equívoco de casar-se com ele. Durante um banho, ele caiu morto.
Há tempos, ela mandara construir uma sepultura magnífica, ainda não
utilizada. Um mausoléu. Nele, Gerusa sepultou seu primeiro Zé.
No período da tarde, após descansar
um pouco, retoma o contato com os álbuns. Folheia o da época em que foi casada
com Zé Carlos, o escultor.
Bonito, físico avantajado, elegante,
educado, dono de uma fineza incomum ao tratar com as pessoas, nunca foi um
namorador serial, mas as namoradas que teve sempre foram mulheres belíssimas.
Muito culto, não era pretensioso ao divulgar seus conhecimentos.
Relativamente bonita, Gerusa exalava
um magnetismo que contagiava a todos. Seu corpo pautava-se pelas formas
medianas, nem magra, nem mais recheada. Seu jeito de andar era provido de
um rebolado tentador, nada econômico. Caso se expressasse pela fala, seria
um rebolado tagarela. Nele, a cada passo, as nádegas faziam aquele treme-treme
tal qual a gelatina quando é tocada. Quem sofresse de labirintite e
acompanhasse aquele mexe pra lá, mexe pra cá, cairia. Zé Carlos não
resistiu à exterioridade e à interioridade dela, pediu-a em casamento.
Casaram-se. A cerimônia do casamento foi simples.
Ela estava sempre presente no ateliê do marido. Por lá, transitavam as modelos que pousavam para a produção escultórica dele. Levando em conta a preferência de Zé Carlos por figuras humanas em suas esculturas, quis tirar uma dúvida. Perguntou-lhe:
- Sempre as modelos tipo graveto
(magras), por quê?
Ele explicou-lhe que a antiga
inclinação por mulheres mais gordas simbolizava a maternidade, a submissão do
sexo feminino. Dos anos sessentas em diante, devido à emancipação feminina,
optou-se pela secura das formas, símbolo da independência feminina. Mas
entendia que todos os tipos de formas tinham seus atrativos.
E acrescentou:
- Esculpirei o corpo mais lindo que
já vi na vida, o seu. E junto, o meu. Nós dois numa das posições do Kama Sutra,
aquele livro que ensina malabarismos nas posições sexuais. Farei um escultura com
imensa carga erótica. Ninguém precisará saber, será um segredo nosso. Nem
há necessidade de você posar, conheço o teu corpo poro a poro, pelo a pelo.
Algum tempo depois, terminou o
trabalho. Em bronze, com uma perfeição inigualável, sobre um bloco dessa liga
metálica, lá estavam as formas de Gerusa. Suspirou cheio de amor e disse para
si mesmo: “Humanizei-a”. Agora, só faltava a escultura com a imagem dele para
completar a cena.
Eufórico demais, fez
- involuntariamente - um movimento brusco. A estátua desabou, bateu
com a parte inferior do púbis no rosto do escultor. O impacto provocou
múltiplas fraturas no rosto. Além disso, ao bater com a cabeça contra o chão, ele
sofreu um traumatismo craniano. Ali mesmo, morreu.
A cena perturbadoramente erótica, mas
triste, mostrava o órgão abaixo da região pubiana da estátua sobre o rosto de
Zé Carlos. Caracterizava a reprodução perfeita de uma coreografia do Kama Sutra.
No mausoléu, Gerusa sepultou seu
segundo Zé.
À noite, após um lanche, ela revê o
último álbum, aquele de seu casamento com Zé Rubens, o legista.
No trâmite burocrático da documentação relativa ao falecimento de Zé Carlos, Gerusa teve diversos contatos com o médico legista, Dr. Zé Rubens, encarregado da autópsia do corpo do falecido marido. Nasceu uma grande amizade que se estendeu por anos.
Nesse período, Zé Rubens também ficou
viúvo. Tempos depois, casou-se com Gerusa. Viviam bem, mas ela sempre corrigia
a desagradável mania dele contar a respeito de suas autópsias, exumações etc.
Isso acontecia o tempo todo, mas nunca acontecera no tempo de namoro.
Na hora das refeições, por exemplo, ele fazia minuciosamente esses tipos de comentários. Por sinal, nojentos. A ponto dela alimentar-se antes do almoço e do jantar. À mesa com ele, apenas fingia que comia alguma coisa. Compenetrado no que falava, ele nem percebia isso.
Na hora das refeições, por exemplo, ele fazia minuciosamente esses tipos de comentários. Por sinal, nojentos. A ponto dela alimentar-se antes do almoço e do jantar. À mesa com ele, apenas fingia que comia alguma coisa. Compenetrado no que falava, ele nem percebia isso.
Certa vez, engatados durante o ato sexual, ele comentou que, durante
movimentos idênticos, uma mulher, cujo corpo ele fez o exame cadavérico, foi
morta pelo marido traído. Este a surpreendeu com o amante. E quis detalhar. Gerusa esfriou, não aguentava mais
aquele tipo de comportamento.
Apesar de tudo, era um profissional
dedicado e competente. Devido a isso, foi chamado para compor a equipe de
médicos legistas que examinaria, no Egito, uma múmia ainda fechada dentro do
sarcófago. Presumidamente, um Faraó.
Nesse trabalho, ele contraiu uma
coceira crônica que o levava à loucura. Fez tratamentos especializados, mas não
adiantou. Quando estava nas últimas, balbuciou para Gerusa:
- Anote, no rodapé do laudo que elaborei a
respeito da múmia, o que penso a respeito dos sintomas que sinto.
Em seguida, antes de morrer,
pronunciou suas últimas palavras:
- A coceira tem um quê de masturbação
seguida daquele tipo de orgasmo com arranhões. No mausoléu, Gerusa
sepultou seu terceiro Zé,
Quase meia-noite, guardou os álbuns
de fotografias. Triste, encerrou aquele feriado. Não dormiu bem naquela noite.
No dia seguinte, mandou fazer uma lápide luxuosa para o mausoléu dos ex-maridos.
Dias depois, a lápide foi colocada
lá. Continha os seguintes dizeres:
“Aqui jaz uma
trinca de Zés.”
Imagem: Google
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